sábado, 4 de junho de 2011

Estorvo


Conta-se a história de um homem só na grande cidade, desintegrado de um meio onde predomina a exterioridade, a vaidade e o materialismo. A futilidade das classes superiores, da alta burguesia a que a sua família pertence, contrasta com a miséria que alimenta o crime. Entre uma família fútil, de corações entorpecidos pela fortuna e um bando de criminosos com os quais se envolve, o nosso personagem caminha na solidão, na incerteza, na falta de identidade.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

A religião da comunicação mediática

"Não acredito que o serviço público possa ser adequadamente assegurado por operadores privados."

Mário Mesquita

Alguma televisão argumenta que é o que é em resultado de sondagens, de uma interactividade essencialmente democrática. Isso é, realmente, participação...? Há quem fale em demagogia...
Nem tudo é demagogia nesse plano. Na área das novas tecnologias da comunicação, designadamente na Internet, há motivos para uma grande esperança quanto à possibilidade de interactividade, de diálogo, de debate. É um espaço fortemente investido por lógicas económicas, comercias e publicitárias, mas que rompe, inegavelmente, com a lógica do (quase) monopólio dos comunicadores que domina nos media tradicionais (televisão, rádio e jornais). Resta saber em que medida estes poderiam, recorrendo às potencialidades das novas tecnologias, desenvolver novas práticas interactivas...
E no domínio específico dos media portugueses...?
...Na televisão tenho visto sobretudo encenações de interactividade: as tais sondagens telefónicas, por exemplo. Além disso, existe a tendência para transformar pessoas comuns em vedetas de televisão, fazendo-as sair do anonimato por uma hora, o que se relaciona com a utilização da TV enquanto gestora de afectos e emoções... E isso - mesmo que não tenha interesse do ponto de vista da estruturação de um regime democrático - possui determinado valor na perspectiva da sociedade em que vivemos e de quem participa como actor convidado nesses espectáculos...
...Os reality shows, acha...?
...Pois... Mas, além disso, há lugares de debate, como o Fórum TSF, que têm desempenhado um papel interessante. Nele participam, lado a lado, líderes de opinião (políticos, económicos, culturais) e pessoas desconhecidas do "grande público", além de um terceiro género, mais difícil de reconhecer, constituído por "porta-vozes" de determinadas forças que não se apresentam identificados como tal... O que entrou em declínio foi o debate organizado com participantes escolhidos em função de critérios de representatividade político-social ou da respectiva ligação às instituições de ensino, de cultura, de investigação. Há uma atitude negativa em relação a esse tipo de entrevistas, por ser gerador de fraca rentabilidade em termos de audiências. Além disso, certos jornalistas parecem acreditar que podem substituir, com vantagem, os actores políticos, sociais e culturais dotados de certo tipo de representatividade...

(Entrevista a Mário Mesquita)

A Universidade e a prática

A Universidade está a preparar os jornalistas convenientemente...?

Bem, como sabe, eu sou de História, não sou de Comunicação Social... Mas acho que a Universidade, nos cursos que conheço - e não quero citar nenhum por motivos que compreenderá -, está ainda mais longe da profissão. Ou seja, a nossa Universidade dá sociologias, antropologias, dá linguísticas, dá uma preparação nos domínios das ciências sociais, et., etc. Mas está profundamente cortada da prática profissional e social do jornalista. Isto é, o licenciado, em certo sentido, tanto podia ser licenciado em História como em Comunicação Social - é a mesma coisa. Devo aliás dizer-lhe que há muitos licenciados em História que têm mais preparação em Comunicação Social porque têm exactamente História. E há muitos cursos de Comunicação Social que não dão sequer História...!

..Nem História do Jornalismo...?!
História do Jornalismo creio que dão, mas História-História, História geral, não. Estamos no século XX e ser-se jornalista é tratar dos acontecimentos deste século. Já agora conviria saber alguma coisa para trás... Portanto, eu acho que há ainda um certo corte entre a Universidade e a profissão. Admitindo embora que, ultimamente, esse corte tem sido um pouco diminuído com a incorporação na Universidade de alguns homens de qualidade vindos da comunicação social. Mas eu diria que a Universidade em geral não tem uma política de formar jornalistas. Melhor: não tem um modelo de jornalismo a formar. Porventura, não tinha que ter. O certo é que a Universidade prepara umas pessoas com uns conhecimentos, úteis do ponto de vista da sua formação cultural geral, mas que estão desligados da prática da profissão.

E essa prática da Universidade é um caso particular ou ela, no fundo, faz o mesmo com os futuros arquitectos, os futuros engenheiros, os futuros médicos...?

Não me atreveria a generalizar... Pode ser uma tendência geral, mas acho que no jornalismo é particularmente grave. Porque o jornalismo é uma responsabilidade social muito grande...

Mas não é para isso que a Universidade existe... - para as grandes responsabilidades sociais...?

Exactamente, mas digamos que 80% dos docentes estão completamente desligados do jornalismo. Muitos deles são professores de outras disciplinas das ciências sociais, dão ali alguns conhecimentos... - e eu acho que isso desligou muito os cursos da realidade da profissão.

(Entrevista a Fernando Rosas)

O início da leitura...

"Por muito incongruente que possa parecer a quem não ande ao tento da importância das alcovas, sejam elas sacramentados, laicas ou irregulares, o bom funcionamento das administrações públicas, o primeiro passo da extraordinária viagem do elefante à áustria que nos propusemos narrar foi dado nos reais aposentos da corte portuguesa, mais ou menos á hora de ir para a cama."


E assim começa a nossa aventura narrativa sobre o Elefante de nome Salomão.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

O jornalismo ou a sedução de massas

O jornalismo é, também, sedução...?

Sim, hoje é... Mas hoje é a sedução já de massas. O jornalista seduzia para ser querido e conhecido. E hoje não. As intenções são muito mais materiais. Seduz-se um povo inteiro para o levar a determinadas manifestações, que nada têm a ver com a admiração, porque essas pessoas que controlam a sedução são pessoas que não aparecem.


Quanto às relações entre a cultura e o jornalismo. Acha que o jornalismo está a cumprir a sua, vamos, função, em termos de divulgação, em termos de crítica...?


Há uma coisa em que eles hoje são melhores, os críticos... O crítico de cinema, hoje, como ele escreve, como ele está informado, como ele é capaz de ter uma visão do espectáculo. E, enfim, quem diz cinema diz teatro. E do espectáculo, em geral. Não tanto na política... (...) Mas a verdade é que o jornalismo português subiu muito o nível - em casos isolados. Baixou na generalidade... ou tornou-se mais mediano. Mas na especialidade melhorou...


(Entrevista a Agustina Bessa-Luís)

Jornalismo é uma coisa, comunicação é outra

"(O jornalismo) era a intervenção da pessoa, com todas as suas capacidades, com todos os seus direitos, e que, perante um facto, que poderia ser discutível, apresentava provas... O jornalismo precisa de provas para ser desempenhado... Eu acho que isso foi dando lugar, realmente, à comunicação social, que é outra coisa... (...) O jornalismo é mais pessoal. (...) Enquanto que a comunicação social é mais diluída. Não é um retrato, mas sim, já, um panorama, em que incluo muito mais do que esse retrato pessoal de um acontecimento...

Quase já não há jornalismo... Eu acho que quase já não há jornalismo... Entre nós, ainda se aponta este ou aquele jornalista, mas já é muito raro... Porque o jornalista, e a simpatia pelo jornalista - e a minha simpatia, até pela minha aceitação de um cargo de directora de um jornal... -, era justamente essa qualidade. Havia uma afinidade maior da minha parte com o jornalista, como pessoa de letras, do que há com a comunicação social, em geral... "

Agustina Bessa-Luís

Beija-Mim

"Nos seus doze anos de vida, nunca tinha visto os pais beijarem-se. Agora, interrogava-se: «Será que alguma vez tinham dado um beijo?», «Será que ainda tinham uma vaga recordação do suave travo da saliva?» (...)Benjamin também nunca presenciou um abraço, um roçar de ombros, um gesto mais carinhoso. Há muito que os pais estavam órfãos de afectos. Trabalhavam de sol a sol (...) Benjamin não se via a fazer uma pergunta destas ao pai - Como é que se dá um beijo?"

Benjamin sentia-se só e perdido sem saber a quem pedir ajuda...o melhor amigo, Patraquim, era um pouco tonto e o beijo também era novidade para ele, os pais nem pensar e no bairro o ambiente e o pessoal eram demasiado "pesados"...Ao deambular pelo bairro passou pelo café Royal no seu bairro local que se transformava muitas vezes no centro do mundo onde os jovens punham a conversa em dia e contavam os pormenores dos últimos assaltos...e..foi ao passar em frente ao café que se lembrou de perguntar a dois colegas, bem mais vividos e já com "currículo", como é que se dá um beijo....?

quarta-feira, 1 de junho de 2011

As personagens

(...)"O Cosme, o Ilidio e o Galopim eram um grupo despropositado, com a diferença de alturas e de maneiras de caminhar. Muito brancos, vinham calados. Com a navalha, o Josué cortou pão e uma tira de toucinho para cada rapaz. O pai do Cosme encheu um copo de vinho para os três. Aos poucos, voltaram a ganhar cor (...)" 
 
As personagens de Livro são na sua essência, verdadeiras, puras, quase inocentes. Muito mais do que simples criações, cada personagem tem uma história de vida para contar. 
A autenticidade e originalidade com que são descritas revelam, a forma de estar, agir e sentir de uma comunidade rural mas sobretudo do povo português.
Ilídio, Adelaide, Galopim, Cosme, Josué, Livro, a velha Lubélia ou Daquele da Sorna são apenas alguns nomes dos intervenientes neste romance que, segundo o autor foram escolhidos,"por serem nomes bonitos que infelizmente estão em desuso". 
 
 

"Comer" Fizz Limão

Este primeiro capítulo, denominado "Comer", está recheado de deliciosas recordações gulosas. Chicletes, Bolachas, Gelados são algumas das referências infantis de Nuno Markl.
FIZZ LIMÃO - Uma delícia do passado desaparecida. Nuno Markl mostra-se indignado com o desaparecimento de um dos melhores gelados alguma vez criado e, aproveitando a melodia da canção "A Lenda d'El-Rei D. Sebastião" do Quarteto 1111, cria uma espécie de música de culto ao famoso gelado.

Nota: Este cromo de Janeiro de 2010 deu origem a uma petição, no Facebook, criada por um ouvinte, desafiando a Olá a relançar o gelado Fizz. A petição foi assinada por milhares de ouvintes. Meses depois a Olá dava ouvidos aos fãs da Caderneta e o Fizz voltou mesmo às arcas congeladoras de Portugal!

Mecânico, o Cão. Mecânico, o Homem.


Em Fahrenheit 451, a acção começa com três personagens principais: temos Montag, o anti-herói que se vai reabilitando; a sua mulher, Mildred, que pela tentativa de suicídio evolui, no enredo, de morta-viva para alienada mas com alma; e a jovem Clarisse, a louca que nos surge como último vestígio da sociedade humanizada tal como a compreendemos, capaz de se maravilhar com os pingos da chuva, de brincar com um dente-de-leão e de tentar pensar sobre o mundo que a rodeia.

Mas, para além destas personagens, há outras, secundárias, mas que nos cativam. Deixo-vos com a minha preferida... até agora.

Mecânico, o cão, é o sucessor robótico do típico dálmata que, tradicionalmente, é mascote das corporações de bombeiros*. Mas, como é de prever num mundo onde o papel dos bombeiros é atear fogos, e não apagá-los, Mecânico não é uma mascote vulgar. Desde logo porque, já o dissemos, é robótico. Mas sobretudo porque é letal: consoante uma programação para detectar odores e composições químicas, Mecânico ataca. E mata. Sem remorso, sem fuga possível. E sem problema, até ao dia em que Montag, o nosso herói, começa a pensar - sempre o maldito vício humano de pensar a provocar as mudanças que movem o mundo - e se interroga o que acontecerá se programarem o Mecânico para detectar o seu odor corporal.

Todas as armas nos parecem inofensivas - pelo menos ignorámo-las como tal - até ao momento em que as visualizamos a serem utilizadas em nós ou nos que amamos. E essas armas podem ser de fogo ou de poder, isto é, contra os direitos, liberdades e garantias de todos e cada um. Recordo, a propósito, uma citação de Voltaire,o poeta, ensaísta, dramaturgo, filósofo e historiador iluminista francês, cuja morte aconteceu há exactamente 233 anos e dois dias. Voltaire, que defendia a liberdade de ser e pensar diferente, escreveu: "Posso não concordar com o que diz, mas defenderei até a morte o direito de o dizer".

Mecânico, o cão, é - na minha leitura - a metáfora para a nossa tendência para desvalorizar aquilo que, sabendo nós que é errado, que está mal, não nos afecta directamente... ainda. Em véspera de eleições, Mecânico pode ser a abstenção. Em tempo de casos mediáticos de violência juvenil, Mecânico é apontar um dedo sem compreender para onde apontam os outros quatro.

E um dia o cão morde.


*Muitos especialistas defendem que terá sido na Dalmácia que esta raça, que acompanhava frequentemente as caravanas ciganas, começou a correr ao lado dos veículos, puxados a cavalos, em que os primeiros bombeiros iam combater os fogos.

terça-feira, 31 de maio de 2011

"La grande messe"

Pivots que, lá (França) como cá, são santos nos altares...
Sim, grandes oficinantes. A palavra é mesmo: C'est la messe, c'est la grande messe... Às oito horas, c'est la grande messe... E aqules que são realmente os da grande messe não só evidentemente têm um estatuto económico, mas também um estatuto de stars. Tornaram-se stars... São personagens que fazem parte da vida política, e que têm a consciência - de resto, excessiva, e falsa... - de que também são poder... É claro que não são. Só são poder enquanto a máquina quiser que isso seja realmente poder...

Usufruem de algum...
Têm algum, naturalmente. Têm o poder de convidar este, em vez de convidar aquele... Têm o poder de seleccionar. Só que a visibilidade dessa gente - que milhões de pessoas, a uma hora certa, é tão ofuscante que, quando a luz é retirada - quando eles se retiram do ecrã... -, é como se entrassem num buraco negro. Eles próprios devem sentir, evidentemente, que essa perda de imagem é uma perda de identidade. A sua identidade está concentrada realmente nessa imagem... Há quem depois vá para outras coisas. Mas há outros que desaparecem do ecrã, no sentido próprio do termo. Não como um bom actor que abondona o palco. Não como qualquer um de nós que deixa a sua profissão, a sua ocupação. Na televisão, nós assistimos e participamos realmente nisso... Quer dizer, nunca uma sociedade esteve tão envolvida nas suas próprias representações como a nossa. É a sociedade do espectáculo. Um espectáculo dado pelos actores da cena pública, ou da cena mediática, diante dos quais o espectador se comporta como um ser passivo...

(entrevista a Eduardo Lourenço)

Os filhos de Bill Gates

O jornalista já não é filho de Homero nem de Fernão Lopes, é, hoje, pura e simplesmente, filho do Bill Gates...?
De algum modo sim... Vendo bem, é doloroso pensar que estamos numa espécie de ruptura. Mas realmente os grandes jornalistas têm depois uma outra possibilidade de reestruturar a sua actividade na urgência, em função de um distanciamento que lhes permite depois reescrever naturalmente... Mas isso, em boa medida, faz parte da memória do jornalismo. Enquanto jornalistas, eles já são, como diz, sobretudo filhos de Bill Gates...

E isso condiciona, transfigura, a sua consciência cultural?
Decerto. Tomando aqui, claro, o cultural no sentido muito amplo, no sentido em que tudo o que nos diz respeito é cultural. Naturalmente a percepção do pensamento do outro, do sentimento do outro, do comportamento do outro, são culturais. Somos seres culturais, por definição.

Para além, evidentemente, do jornalismo estritamente cultural...
Evidentemente. Foi o jornalismo que inventou essa ideia do jornalista cultural, ou os media de tipo realmente cultural. Mas a verdade, por enquanto pelo menos, no jornalismo em geral, nos mass media, o cultural é a última roda do carro...

(entrevista a Eduardo Lourenço)

A angústia do jornalismo...

"Bom, o jornalismo nunca foi profissão propriamente para angustiados (...) O protótipo do jornalista é o que tem espírito de decisão, o sentido do tempo, de aproveitar a mensagem no momento em que ela é útil, em que é primeira, em que é relevante... E agora há como que uma instantaneidade de informações, inclusivamente contraditórias, e o jornalista tem de decidir como um chefe de estado-maior numa batalha à antiga, ou moderna, ou como um político num avião. Tem que saber dar, realmente, a resposta. Penso que o tempo do jornalista confrontado com esse contexto novo, totalmente novo, é um tempo diferente do jornalista que tinha um tempo para meditar na situação, um tempo de escrita. Consequências de uma revolução tecnológica sem precedentes."

Eduardo Lourenço

"Exactamente como a morte, a televisão é incontornável"

"Exactamente como a morte, a televisão é incontornável."

Eduardo Lourenço


"Eduardo Lourenço interroga-se sobre se serão, de facto, jornalistas alguns jornalistas de televisão. (...) Este poder desdobrado, multiplicado, exaustivamente comunicante e cada vez mais descentrado da informação. (...) Eduardo Lourenço é, sem dúvida, o mais importado de todos os nossos estrangeirados. Homem assim de todos os colóquios, encontrámo-nos no intervalo de um deles."

Como sabe, a Comunidade está a desenvolver um projecto de convergência envolvendo os mass media, as telecomunicações, a Internet. Não haverá, neste "pacote", já um novo jornalista, um novo jornalismo?
Bom... Uma pessoa não se pode queixar do excesso de riqueza que lhe é oferecida. Mas, como todo o tipo de riqueza, vai ser, primeiro, uma forma de tentação nova. Provavelmente outra questão será gerir essa nova riqueza. O jornalista terá de se multiplicar, de se subdividir. Porque os media condicionam os tipos de resposta.

(Entrevista a Eduardo Lourenço)

Estorvo "olho mágico"


“Para mim é muito cedo, fui deitar dia claro, não consigo definir aquele sujeito através do olho mágico. Estou zonzo, não entendo o sujeito ali parado de terno e gravata, seu rosto entumescido pela lente. Deve ser coisa importante, pois ouvi a campainha tocar várias vezes, uma a caminho da porta e pelo menos três dentro do sonho. Vou regulando a vista e começo a achar que conheço aquele rosto de um tempo distante e confuso. Ou senão cheguei dormindo ao olho mágico, e conheço aquele rosto de quando ele ainda pertencia ao sonho. Tem a barba. Pode ser que eu tenha visto aquele rosto sem barba, mas a barba é tão sólida e rigorosa que parece anterior ao rosto. O terno e a gravata também me incomodam. (...) Procuro imaginar aquele homem escanhoado e em mangas de camisa, desconto a deformação do olho mágico e é sempre alguém conhecido mas muito difícil de reconhecer. E o rosto do sujeito assim frontal e estático embaralha ainda mais o meu julgamento. Não é bem um rosto, é mais a identidade de um rosto, que difere do rosto verdadeiro quanto mais você conhece a pessoa. Aquela imobilidade é o seu melhor disfarce para mim. Recuo cautelosamente, andando no apartamento como dentro d’água. (...) Enquanto estou ali ele não toca a campainha, não olha o relógio, não acende o cigarro, não tira o olho do olho mágico. Agora me parece claro que ele está me vendo o tempo todo. Através do olho mágico ao contrário, me vê como se eu fosse um homem côncavo. Assim ele me viu chegar, grudar o olho no buraco e tentar decifrá-lo, me viu fugir em câmara lenta, os movimentos largos, me viu voltar com a fisionomia contraída e ver que ele me vê e me conhece melhor do que eu a ele.(...) Agora ele já percebeu que é inútil, que não me engana mais, que eu não abro mesmo (...) então abana a cabeça e sai da minha visão. E é nesse último vislumbre que o identifico com toda a evidência, voltando a esquecê-lo imediatamente. Só sei que era alguém que há muito tempo esteve comigo, mas que eu não deveria ter visto, que eu não precisava rever, porque foi alguém que um dia abanou a cabeça e saiu do meu campo de visão, há muito tempo.”

O sujeito que o protagonista não consegue decifrar a identidade é a causa do seu deslocamento ao longo do livro. O excerto evidencia a dimensão subjectiva em que se inscrevem os processos mentais que o protagonista usa para se relacionar com o mundo, confundindo logo o plano denotativo da realidade com o plano do sonho, povoado (ou não, não se sabe), pelas imagens captadas pela retina. E mesmo este órgão, tão específico para a visão é contudo tão falível, é aqui substituído por um instrumento de tecnologia rudimentar, dotado de um nome vulgar e sugestivo: o “olho mágico”.

Aqui há também um sinal interessante quanto ao movimento. Como já disse, o romance desenrola-se num movimento quase contínuo, em deslocações constantes, e é mesmo na ausência de movimento que o protagonista encontra-se desorientado: “Aquela imobilidade é o seu melhor disfarce para mim”. Mais uma vez troca-se a perspectiva: a condição que facilita a observação torna-se disfarce.

"A mãe pousou o livro nas mãos do filho"

“A mãe pousou o livro nas mãos do filho. Que mistério. O rapaz não conseguia imaginar um propósito para o objecto que suportava. Pensou em cheirá-lo, mas a porta do quintal estava aberta, entrava luz, havia muita vida lá fora.”
Inicia-se a espantosa viagem de Livro. Dividida em duas partes distintas, a obra contempla numa primeira fase o ambiente rural, de miséria, de fome mas também de falta de liberdade. Retrata-se a “felicidade proibida” de Ilídio e Adelaide, duas personagens presentes no romance, envolta pelo medo, pelo preconceito, pela vergonha, pela censura do regime Salazarista.
A acção desenrola-se numa vila pobre do interior de Portugal e caracteriza-se pela descrição autêntica e realista. A comprová-lo surgem episódios como, a matança do porco ou os tradicionais bailes, onde todos convivem e participam. Os bailes de verão são a grande festa da vila e o ponto de encontro dos emigrantes com os seus familiares, mas sobretudo o reencontro com as suas raízes, com os seus hábitos e tradições.