quarta-feira, 1 de junho de 2011

Mecânico, o Cão. Mecânico, o Homem.


Em Fahrenheit 451, a acção começa com três personagens principais: temos Montag, o anti-herói que se vai reabilitando; a sua mulher, Mildred, que pela tentativa de suicídio evolui, no enredo, de morta-viva para alienada mas com alma; e a jovem Clarisse, a louca que nos surge como último vestígio da sociedade humanizada tal como a compreendemos, capaz de se maravilhar com os pingos da chuva, de brincar com um dente-de-leão e de tentar pensar sobre o mundo que a rodeia.

Mas, para além destas personagens, há outras, secundárias, mas que nos cativam. Deixo-vos com a minha preferida... até agora.

Mecânico, o cão, é o sucessor robótico do típico dálmata que, tradicionalmente, é mascote das corporações de bombeiros*. Mas, como é de prever num mundo onde o papel dos bombeiros é atear fogos, e não apagá-los, Mecânico não é uma mascote vulgar. Desde logo porque, já o dissemos, é robótico. Mas sobretudo porque é letal: consoante uma programação para detectar odores e composições químicas, Mecânico ataca. E mata. Sem remorso, sem fuga possível. E sem problema, até ao dia em que Montag, o nosso herói, começa a pensar - sempre o maldito vício humano de pensar a provocar as mudanças que movem o mundo - e se interroga o que acontecerá se programarem o Mecânico para detectar o seu odor corporal.

Todas as armas nos parecem inofensivas - pelo menos ignorámo-las como tal - até ao momento em que as visualizamos a serem utilizadas em nós ou nos que amamos. E essas armas podem ser de fogo ou de poder, isto é, contra os direitos, liberdades e garantias de todos e cada um. Recordo, a propósito, uma citação de Voltaire,o poeta, ensaísta, dramaturgo, filósofo e historiador iluminista francês, cuja morte aconteceu há exactamente 233 anos e dois dias. Voltaire, que defendia a liberdade de ser e pensar diferente, escreveu: "Posso não concordar com o que diz, mas defenderei até a morte o direito de o dizer".

Mecânico, o cão, é - na minha leitura - a metáfora para a nossa tendência para desvalorizar aquilo que, sabendo nós que é errado, que está mal, não nos afecta directamente... ainda. Em véspera de eleições, Mecânico pode ser a abstenção. Em tempo de casos mediáticos de violência juvenil, Mecânico é apontar um dedo sem compreender para onde apontam os outros quatro.

E um dia o cão morde.


*Muitos especialistas defendem que terá sido na Dalmácia que esta raça, que acompanhava frequentemente as caravanas ciganas, começou a correr ao lado dos veículos, puxados a cavalos, em que os primeiros bombeiros iam combater os fogos.

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