terça-feira, 31 de maio de 2011

Estorvo "olho mágico"


“Para mim é muito cedo, fui deitar dia claro, não consigo definir aquele sujeito através do olho mágico. Estou zonzo, não entendo o sujeito ali parado de terno e gravata, seu rosto entumescido pela lente. Deve ser coisa importante, pois ouvi a campainha tocar várias vezes, uma a caminho da porta e pelo menos três dentro do sonho. Vou regulando a vista e começo a achar que conheço aquele rosto de um tempo distante e confuso. Ou senão cheguei dormindo ao olho mágico, e conheço aquele rosto de quando ele ainda pertencia ao sonho. Tem a barba. Pode ser que eu tenha visto aquele rosto sem barba, mas a barba é tão sólida e rigorosa que parece anterior ao rosto. O terno e a gravata também me incomodam. (...) Procuro imaginar aquele homem escanhoado e em mangas de camisa, desconto a deformação do olho mágico e é sempre alguém conhecido mas muito difícil de reconhecer. E o rosto do sujeito assim frontal e estático embaralha ainda mais o meu julgamento. Não é bem um rosto, é mais a identidade de um rosto, que difere do rosto verdadeiro quanto mais você conhece a pessoa. Aquela imobilidade é o seu melhor disfarce para mim. Recuo cautelosamente, andando no apartamento como dentro d’água. (...) Enquanto estou ali ele não toca a campainha, não olha o relógio, não acende o cigarro, não tira o olho do olho mágico. Agora me parece claro que ele está me vendo o tempo todo. Através do olho mágico ao contrário, me vê como se eu fosse um homem côncavo. Assim ele me viu chegar, grudar o olho no buraco e tentar decifrá-lo, me viu fugir em câmara lenta, os movimentos largos, me viu voltar com a fisionomia contraída e ver que ele me vê e me conhece melhor do que eu a ele.(...) Agora ele já percebeu que é inútil, que não me engana mais, que eu não abro mesmo (...) então abana a cabeça e sai da minha visão. E é nesse último vislumbre que o identifico com toda a evidência, voltando a esquecê-lo imediatamente. Só sei que era alguém que há muito tempo esteve comigo, mas que eu não deveria ter visto, que eu não precisava rever, porque foi alguém que um dia abanou a cabeça e saiu do meu campo de visão, há muito tempo.”

O sujeito que o protagonista não consegue decifrar a identidade é a causa do seu deslocamento ao longo do livro. O excerto evidencia a dimensão subjectiva em que se inscrevem os processos mentais que o protagonista usa para se relacionar com o mundo, confundindo logo o plano denotativo da realidade com o plano do sonho, povoado (ou não, não se sabe), pelas imagens captadas pela retina. E mesmo este órgão, tão específico para a visão é contudo tão falível, é aqui substituído por um instrumento de tecnologia rudimentar, dotado de um nome vulgar e sugestivo: o “olho mágico”.

Aqui há também um sinal interessante quanto ao movimento. Como já disse, o romance desenrola-se num movimento quase contínuo, em deslocações constantes, e é mesmo na ausência de movimento que o protagonista encontra-se desorientado: “Aquela imobilidade é o seu melhor disfarce para mim”. Mais uma vez troca-se a perspectiva: a condição que facilita a observação torna-se disfarce.

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