sexta-feira, 20 de maio de 2011

Fahrenheit 451, metáfora para o salazarismo obscurantista?

É entrelinhas que um livro se torna único. É entrelinhas que o meu livro é diferente dos outros milhares impressos com o mesmo título e a mesma capa. Porque é entrelinhas que cada leitor retira, de cada vocábulo, frase ou parágrafo, algo de só seu. Porque o que lemos é sempre diferente do que está escrito: acrescentamos aos caracteres as nossas experiências, recordamos cheiros, sabores, histórias de outros livros.


A leitura dos portugueses, como povo, também difere das dos leitores de outros países, na exacta medida em que as suas experiências colectivas são distintas das nossas. Para além de que – excepção feita aos intelectuais poliglotas puristas (a designação não encerra nenhuma crítica, bem pelo contrário) que lêem os livros na versão e língua originais – a própria tradução das obras para as línguas nativas dos leitores de diferentes países contribui para uma diferenciação significativa da mensagem. Neste caso, é da mais elementar justiça referir que a tradução de «Fahrenheit 451» que escolhi foi realizada por Mário Henrique Leiria. Adiante.
“Fahrenheit 451” é um livro, pequeno em dimensão, que aborda uma questão maior na experiência portuguesa: a da censura e do domínio sobre o povo pela proibição da instrução e promoção do entretenimento fácil. Mesmo sem recuar aos tenebrosos tempos da Inquisição ou do Santo (?) Ofício (quando em 1539, o irmão mais novo do rei D. João III, cardeal D. Henrique, foi nomeado inquisidor-geral do Tribunal do Santo Ofício, os livros que não caíam nas suas boas graças, de “Os Lusíadas”, de Luís de Camões, até “A Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto, podiam resultar em penas pesadas aos seus autores, editores e leitores), é possível encontrar, na nossa História recente, um paralelismo com o tema central de “Fahrenheit 451”. No período do chamado Estado Novo e do regime salazarista, um Portugal analfabeto era «alimentado» com a trilogia “Fado, futebol e Fátima”, que outros reduziram à expressão “pão e circo”.


Alexandre Herculano escreveu sobre o assunto:
"Onde quer que apareça a censura, onde quer que se aninhe esta irmã gémea da Inquisição, há uma quebra nos foros da independência do homem, há uma insolência do passado contra a dignidade social da geração presente. Seja para o que for, a censura é um impossível político."

Mais recentemente, Anele Reis, autora de um apontamento sobre a censura, publicado no mensário «Portugal Socialista», de Janeiro de 1983, também refere:
"A censura, numa prática constante e presente através da cultura portuguesa, como dado negativo que é, contribuiu para forjar nossa maneira de ser e de estar no mundo, modelou comportamentos, estabeleceu preconceitos que vêm preocupando historiadores da cultura..."

Um dos últimos relatórios da actividade da Comissão de Censura, referente a Janeiro de 1974, indica quase centena e meia de títulos retirados do mercado em apenas um mês. Segundo afirmou, em 1984, a Comissão do Livro Negro do Fascismo, foram proibidas durante o regime Salazar/Caetano cerca de 3300 obras.

Felizmente, como em “Fahrenheit 451”, em Portugal há, nas palavras imortalizadas por Zeca Afonso, “há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não”. No livro de Ray Bradbury, como no Portugal cinzento de Salazar, houve quem desafiasse as ordens e lesse, e falasse sobre o que leu, e pensasse. E o pensamento, que a literatura estimula como nenhuma outra arte (na minha modesta e assumidamente suspeita opinião), vence sempre a ignorância, por mais armada.

Vamos ler?




(Para mais informações sobre a censura em Portugal, ver http://www.vidaslusofonas.pt/livros_e_censura.htm)

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